11/11/2009

CRÔNICAS D'ANTANHO

MEMÓRIAS DE CINEMA

Na minha cidade natal, Porto Alegre, o ano era o de 1943 ou 44, não me lembra bem. Eu tinha uns oito anos de idade mas certos acontecimentos de então - mais os bons do que os ruins, que não esqueço mas finjo que - até hoje recordo com carinho e um sorriso constante nos lábios. Como qualquer velho, eu, a propósito, diria : aqueles é que eram bons tempos... Bobagem, quaisquer tempos com oito anos são bons tempos.
A 2ª Guerra seguia firme, na Europa e na Ásia. Nós torcíamos, éramos dos Aliados, contra os nazistas e os amarelos. E colecionávamos os cartões Asas da Vitória, que vinham em barrinhas de chocolates, com todos os modelos de aviões de guerra, multicoloridos; o Tigre Voador, da Inglaterra era o mais admirado, com seu bico pintado como boca de tubarão aberta, o que na época servia como tigre, era assustador e poderoso. E também figurinhas dos grandes heróis e líderes, generais e políticos; um dos mais difíceis , odiado mas objeto de desejo de todo guri da época, era Togo – só o nome nos deixava apreensivos -, o primeiro ministro japonês, o inimigo cruel, impiedoso.
A capital do valoroso Estado do Rio Grande do Sul, terra do gaúcho, bombacha, chimarrão e de macho, também participava do esforço de guerra que o país solicitara: os carros circulavam “a gasogênio”, enorme fornalha instalada na mala dos carros, para não desperdiçar gasolina, necessária para a guerra; havia a campanha do alumínio, quando caminhões passavam pelas ruas e a gente jogava panelas, bandejas e outros utensílios domésticos para , diziam, serem derretidos e confeccionadas armas para os combatentes; cigarros também, havia os caminhões para estes, para os pracinhas, que na volta relataram ter recebido somente marcas como Odalisca, Aurora, os matarratos da época, embora a população contribuísse com Hollywood, o fino de então; mistérios da guerra... Nas praias, Capão da Canoa, Torres, Tramandaí, sempre à noite alguém via um submarino alemão fazendo sinais luminosos para a terra, para algum quinta coluna, os espiões de então; todos desconfiavam sempre de algum alemão conhecido, na redondeza. E à noite, periodicamente, exercícios – emocionante - de “Black out”, com a cidade inteira desligando as luzes, escuro total, proteção contra ataques aéreos; a gurizada aproveitava para ir para a cama dos pais, que era mais seguro e quentinho.A sirene tocava e assim voltava a luz e a normalidade de tempos de paz, porque então nada havia on line, nem em tempo real.
A vida era boa, na Porto Alegre daquela infância. Escola na Redenção, brincar na rua, na Venâncio Aires, na Santa Terezinha, onde brigava bastante com um , já então, gordinho, filho do seu Érico, ícone do bairro e da cidade; fim de semana , no Bonfim, onde morava o resto da família, tios, primos e primas de todas as idades e chatices, com muitas brigas entre si, por variados motivos e até sem eles, afinal, eram uma família... Bem legal, diria hoje, ao voltar a frequentá-los, aqui. Nessa época, começou a se desenhar o gosto por cinema. O pai era, entre as várias atividades com as quais não parava quieto, um dos proprietários do Cine Baltimore, enorme cinema (pelo menos assim me parecia, à época) do bairro, e onde, por ser filho do dono, podia entrar de graça e, por isso mesmo, ter muitos amigos.
O saguão era muito grande, muitas luzes, espelhos , cartazes das próximas atrações e uma bombonière com mil produtos, entre balas, chocolates, chicletes, enfim, um delírio; o filho do dono ajudava a atender, atrás do balcão e a todo instante caía alguma balinha no chão e, claro, não ficava bem colocar à venda outra vez, pelo que ia para o bolso, com o consentimento do baleiro. Duas entradas laterais levavam à platéia, grande, teto abobadado, alto. E, o que era mais notável e só lá existiam, camarotes para seis pessoas, suspensos nas paredes laterais e na dos fundos. Eram para espetáculos teatrais ou recitais, pois o Baltimore tinha palco. Um espaço monumental e mágico. Um mundo de fantasia, viagens e novidades quando , no escuro, o foco de luz vindo da cabine de projeção nos arrebatava e conduzia sem limites e sem fronteiras. Nada, nem uma ou duas ratazanas, que insistiam em driblar a desratização e trombar com os pés dos espectadores, podia deslustrar aquele encantamento. E ainda tinha as brigas nas matinées, com os guris comuns, querendo entrar no camarote onde o filho do dono e seus comparsas assistiam ao filme, fazendo questão de mostrar o privilégio que lhes era dado. Até chegar o lanterninha a coisa ficava feia, depois acalmava, quando já aparecia na tela o mocinho, nos seriados de ação e aventura; filmes em episódios, feitos para passar um antes de cada filme, durante a semana, mas que não se sabe porque, em Porto Alegre, passava todo de uma vez ,numa só sessão, repetindo as últimas cenas de um episódio ao iniciar o outro; parecia um filme com soluços. Inesquecíveis matinées do Baltimore.
“Eu quero!” Como não haveria de querer. Ir ao cinema à noite, coisa de gente grande. Ainda mais sendo proibido. “Ele já é um homenzinho” argumentou o pai para uma mãe reticente. “Não sei se é próprio, é uma criança. Ainda mais para ver esse filme.”, dizia ela. “Não, já está na hora de começar a ver coisas mais sérias”, insistia o pai, sabendo que valeria a opinião dele, como sempre. E assim foi decidido –“ mas eu vou também, não vou deixar esse menino sozinho nesse filme, de jeito nenhum”, impôs a mãe. Glória, cinema à noite, filme proibido, KING KONG !
A sessão começou, pondo fim à ansiedade, com o tradicional noticiário cinematográfico, com meses de atraso em relação aos eventos, mas ,ao som de trombetas, intitulado Atualidades Cinematográficas; depois o trailer da próxima atração. E , então, finalmente, o KING KONG. Aí foi possível sentar na cadeira, não mais ficar agachado atrás do peitoril do camarote para não ser visto pelo fiscal da Prefeitura, sempre à procura de um desrespeitador da lei e da ordem para multar o dono do cinema.
O filme transcorria como a alta expectativa prenunciara, olhos arregalados, coração apertado; a mãe, sentada ao lado, preocupada com os efeitos da iminente aparição do monstro, super protetora; queria, a todo custo, evitar que o guri, o seu guri, o “homenzinho” do pai apressado, levasse algum susto que lhe fosse prejudicial, causasse algum dano psicológico – intuitivamente, porque àquela época, a viagem do Dr. Freud ainda não havia chegado a Porto Alegre.
Às vezes a coisa não funciona bem como se espera. Ela, a mãe, não podia imaginar o que de susto e terror ela causou quando, ao aparecer o primeiro grande close do macacão, tampou , no mesmo instante, parecia ensaiado, os olhos do filho, para ele não ver, não se assustar. Não podia imaginar, e nunca soube, ainda bem, o que foi, de repente, sem saber de onde nem porque, uma enorme mão agarrar-lhe o rosto, que susto!, quase fez nas calças, ficar tudo escuro e urros, berros assustadores, vindo não se sabe donde. Um terror, o coração só não saiu pela boca porque havia uma misteriosa mão impedindo.
No dia seguinte, teve que inventar para poder contar aos amigos o que não vira. Mas valeu. A emoção do primeiro cinema à noite, a cumplicidade do pai, saber que tinha sempre a mãe ao seu lado, mesmo pagando mico em filme de gorila, e a noção do que seja terror cinematográfico; isso o que mais ficou gravado, tanto que cinquenta e tantos anos depois, a versão colorida e cheia de efeitos especiais, a versão da era tecnológica, despertou apenas curiosidade e um certo sorriso desdenhoso. “Não sabem de nada!” “Não sabem o que é KING KONG!”
A nova versão nunca mais foi vista, mas a original, branco e preto, essa sim, não dá para perder.

FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO

de JORGE LUIS BORGES

24 - Não exageres o culto da verdade; não há homem que no final de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.

50 - Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.

51 - Felizes os felizes.

Revista PIAUÍ, nº 37, pág. 50