25/07/2009

BENIAMINI

II Concurso CCMA de Literatura - CONTO
MENÇÃO HONROSA

BENIAMINI

Cada viagem é uma viagem, oniricamente falando. Ainda mais se para a terra das nossas raízes, onde finalmente – e como !-, troncos, galhos, folhas, flores e frutos – milhares de ! – explodem, em vigorosa e profícua diversidade, típica da alma judaica; a unidade na diversidade, gente muito gente e golems, inclusive.
Vivenciam-se fatos, ouvimos História e estórias, e trazemos as que mais teem a ver com o que queremos ver. A minha, contada numa visita às escavações no Muro das Lamentações, pelo excelente guia – porque orgulhoso do que fazia -, certamente muitos já a ouviram, muitos ainda a ouvirão, mas quero contá-la porque ao final de cada versão se faz uma nova verdade. Foi assim :
Quando ele chegou, já tinha uns setenta anos. Corpo franzino, mas rijo, um pouco encurvado, um brilho alegre e decidido no olhar. Pouco loquaz, era sobrevivente dos campos de extermínio e queria um emprego, junto ao Muro e no setor de limpeza. O encarregado do pessoal vasculhou seus registros, a intenção era arranjar-lhe uma vaga. “Se fosse em outro setor, teríamos agora, mas o senhor insiste...”
- Pois é, é isso mesmo e eu fico muito agradecido.
- Então só para daqui a dois meses. Vai vagar um lugar.
- Tá bom, eu espero; e lhe fico imensamente grato. Volto na data que o senhor marcar, aqui estão meus papéis, pode registrar e até lá. Shalom!
- Shalom. Como é mesmo o seu nome?
- Beniamini, Shmuel.
Pontualmente, dois meses depois, ele se apresentou. Trâmites burocráticos realizados, o encarregado apresentou-o aos colegas e à sua mesa de trabalho.
- Adoni, eu acho que o senhor esqueceu ou houve algum engano; eu quero trabalhar na limpeza, no Muro.
- Mas meu velho, sejamos francos: para seu estado físico e idade, limpeza externa é um serviço muito pesado. Pode não sair bem feito, pode não lhe fazer bem, e a responsabilidade é minha, em ambos os casos.
- Pode deixar, eu garanto e faço questão. Depois do que eu já enfrentei não vai ser uma vassoura que vai me derrubar e chuva e sol não me dizem nada. Pode deixar, fique tranquilo.
E, promessa feita, promessa cumprida. Um bom par de anos o velho cumpriu suas obrigações com eficiência e decisão. No semblante, um ar de prazer, de projeto realizado. Itzhak, o guia, curioso, com o tempo foi se chegando a Beniamini, puxando conversa, trocando idéias, pedindo opiniões. Ganhara sua confiança e, agora, costumavam comer sanduíches juntos, à hora do almoço, sentados na mureta em frente à entrada dos sanitários públicos.
- Shmuel, diga-me uma coisa, sinceramente; o senhor não acha que deveria trabalhar em outro setor? Isto é muito pesado para sua idade. Ou será cabeça-dura de judeu velho?
- Não, meu rapaz. Tudo na vida tem sua razão, senão as coisas ficam sem sentido. Não sou cabeçudo, sei o que quero e estou feliz assim; enquanto der, estarei aqui, não quero outra vida. Até já quiseram botar um russo, recém chegado, no meu lugar, mas a briga foi boa e aqui continuo.
- Mas então me diga, por quê?
- Vou te contar. Imagino que alem de você, muitos outros devem ter a mesma curiosidade. Vou te contar e pode espalhar. É até bom!
Quando eu estava em Auschwitz, eu trabalhava na faxina, na limpeza externa. Sol, chuva, neve, lama, nada importava; decidira comigo mesmo que aquilo seria uma forma de me manter fisicamente bem, encarava como exercício, era minha academia de ginástica. Tinha que resistir, estar firme, nas minhas orações nunca esqueci o Shemá e “ano que vem em Jerusalém”.
Havia um tenente nazista, alto, forte, um típico exemplar de ariano puro, como eles se achavam, se é que isto existia, que, por algum motivo que eu nunca soube nem quis saber, eu não diria que se afeiçoou por mim, mas pelo menos não me odiava definitivamente. Isto me garantia alguma ração de comida a mais e pancada a menos. Ele, que não sei que fim levou, até que tinha algum conhecimento do ritual judaico, alguma relação frustrada, não sei, pois nunca deixava de, sorrindo maquiavelicamente, toda vez que podia, me apontar a coluna de fumaça que saía do forno crematório e dizer: “Pode ter certeza, ô velho, ano que vem em Jerusalém só por aquele meio de transporte !” E ria, uma risada que eu nunca vou esquecer.
Eu aceitara o jogo, achava que assim teria forças e a cada fustigada do grande guerreiro reagia intimamente, me firmava na decisão: vou sobreviver, vou trabalhar para sempre na faxina, na limpeza, mas em Jerusalém; ano que vem!
E é por isso que vencemos. Aqui estou, cumprindo meu plano de vida arquitetado no campo da morte. Sou feliz, não me queixo e não quero outra vida; casei de novo, tive filhos, netos, que mais posso almejar?

O guia, no final de sua estória, estava emocionado. Nós também. Todos, sem nada combinar, tocavam o Muro com a mão.
- Que fim levou Beniamini?, - alguém perguntou.
- Ainda trabalha na limpeza externa; deve estar com mais de oitenta anos - foi a resposta.
Por quantos anos e para quantos mais esta estória será real?
Para sempre e para todos, é preciso que assim seja.


Uma amiga, a quem contei esta estória, ou melhor dizendo, esta versão desta estória, me escreveu:
... creio que tivemos o mesmo guia, pois a história contada é quase igual, só que achei que há uma incongruência na cronologia e nas idades, na história do Beniamini. Estou certa?
Anita............., Rio de Janeiro, por Email


É pode ser; deixando de lado as emoções, o que não melhora em nada a estória, incongruência há. Mas, não levemos tão a sério as datas, a razão; entreguemo-nos à fantasia, à poesia. Faz um muito mais do que bem!
O que importa é o sentido que tiramos das coisas, fatos ou versões, pois elas flutuam, bailam ou desmancham no ar; sem tanto os pés na terra; triste quem os têm permanentemente. O próprio Beniamini não é um, são tantos, são vários, sempre, através dos tempos. Quando outro, a estória seria diversa, quem sabe?, talvez...
Shmuel Beniamini, naquele dia, estava um pouco mais cansado do que de costume. Mesmo assim, cumpriu sua rotina matinal e, na hora certa, de todo dia, estava no trabalho. Faxina e limpeza no Muro das Lamentações, que já começava a se agitar, com a aglomeração de religiosos e turistas. Havia acordado com a sensação de que aquele dia não seria igual aos outros; o que era bom, afinal com o passar do tempo já sabia exatamente o que seria o minuto seguinte ao minuto passado; rotina...
Abaixando-se para apanhar um jornal que havia sido deixado ao pé da lixeira, sua atenção foi atraída para uma foto estampada na primeira página. “ Mais um empresário que estava ficando mais rico do que já era”. “Estranho, será que já vi este camarada?” “Bobagem, quem sou eu, não freqüento estas rodas...” “ Ele na dele, eu na minha e Deus contra todos...
Shmuel sentiu algo como um mal estar rondando sua cabeça. Endireitando o corpo, para respirar melhor, reparou no casal quase à sua frente. “O cara da foto!” Ela, mais afastada dele, com um xale nas costas e uma echarpe cobrindo-lhe a cabeça; ele, terno escuro, de fino corte, elegante. Recuavam, afastando-se do muro, andando para trás, passos miúdos, reverentes. Quase arrastando-se.
O velho prestou mais atenção no casal; a sensação não era confortável. Ela, cabisbaixa, ele, encurvado, como se carregasse um pesado fardo às costas. Seus olhares se cruzaram, e fixaram-se um no outro; o elegante, um olhar de penitente, Shmuel, brilho e glória.
- Mein Herr, wie geths? –exclamou o velho, o mais alto possível que não parecesse um grito.
O homem encurvou-se mais ainda, virou-se, tropeçou, e apoiado no braço da mulher, apressou o passo, dirigindo-se para o setor cristão da Cidade Velha.Ressoava em seus ouvidos a última frase que Beniamini lhe dirigira, olhos brilhando, expressão finalmente vitoriosa, no rosto intensamente enrugado, por baixo dos seus cabelos alvíssimos:
- Há quanto tempo, tantas vezes, desde o ano passado, o esperamos em Jerusalém! Shalom!





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