19/07/2009

DO LAR

1º CONCURSO GUEMANISSE DE TEXTOS HUMORÍSTICOS
MENÇÃO HONROSA

DO LAR


- Boa noite, princesa.
- Oi.
- Não dá para um sorriso ou será que não fiz por merecê-lo?
- Pô, não começa, cara. Pera um pouco.
- Está bem, acato. Meu destino é perar.
- Ih! Não faz drama; chega esse aí, o das seis. Já vai acabar.
- Está tudo bem, Zê. Quando minha humilde pessoa merecer a luz dos seus olhos, ilumine-me.
- Vai, vai logo tomar teu banho. Depois a gente conversa, janta, dá tempo de sobra pra das 8.
- Tchau. Fui.


- Tá bom?
- Tá.
- Tá ou tááá?
- Médio. Melhor se feito com amor.
- Amor na cozinha cheira a cebola ou alho.
- Pelo menos é mais ardente.
- De alho?
- Essa foi infame.
- A gente faz o que pode.
- Mas quando não pode, não faz.
- Obrigado Rui.
- Euzébio. Barbosa, mas Euzébio.
- Tuzébio?
- Dá pra falar sério?
- Pra quê?
- Você saiu hoje? Pegou um ônibus?
- Por que?
- Calma, não se assuste?
- Assustar, eu?
- É, você mesma. Quase entornou a água.
- Deixa de bobagem. Por que essa CPI agora?
- Mera curiosidade profissional. Amanhã, se tiver tempo ou algum compromisso, vai de ônibus. Quero ver se você nota alguma coisa diferente no transporte.
- Pode deixar, vou de ônibus. Até porque sou a única que não tem carro neste condomínio. Agora come, que já são quase oito.
- Tá bom; não é fácil ser casado com uma intelectual global.
- Bem que você gosta também...
- Eu não; vejo porque está ligado.” En passant”, como dizem os franceses.
- Você e a torcida do Flamengo.
- T’esconjuro!


- Boa noite, Princesa.
- Oi.
- Como foi seu operoso dia? Deu pra tudo? Cerziu minhas meias?
- Dar não dei, mas tive vontade.
- Olha, mulher, olha o respeito.
- Então se toca. Que quié isso, essas perguntinhas?
- Meias, não sabe? Aquilo que o vulgo usa entre o pé e os borzeguins.
- Quê?
- Que o quê? Meias ou borzeguins?
- Não, ô literato! Cerzir. Que que faz com isso?
- Não dianta! Não se fazem mais mulheres como antigamente... Saudades de minha saudosa mãezinha, Deus a tenha!
- Ué, pula pela janela que logo logo vai encontrar ela.
- Muito fino. É essa sua poética que me seduz. Sem mãe no meio, tá bem?
- Então não me provoca. E você, muito trabalho naquela bendita repartição?
- Departamento, minha filha, Departamento. De Concessões. Assaz importante, se quer saber. E seu maridão aqui é o chefe, tá? CHEFE, com letras maiúsculas; o detentor do poder.
- Puxa, conte mais! Só não tou careca de tanto ouvir isso porque uso Sedabrilho nos meus lindos cabelos; eu e a Donatela.
- Dona quem?
- Cara, não se faça de desentendido. A Donatela, a das nove, você sabe muito bem...
- Ah sei, aquela gostosa !
- Olha, me respeita! Te faço uma circuncisão tamanho família.
- Mas então, andou de ônibus hoje? Reparou algo de extraordinário?
- Andei, você não pediu? Agora, reparar mesmo, que eu me lembro, só a imundície desses ônibus. Até barata tinha. Teu Departamento não faz nada, não?
- Ei, vamos com calma. Em primeiro lugar, não é com o meu Departamento; em segundo, o que era pra notar você nem notou. A dondoca só se liga em novela, não é mesmo?
- Vai, desembucha logo, o quê que era pra mim notar?
- Você já reparou nas várias plaquinhas com avisos, pregadas junto ao assento do motorista? Então, tem uma nova, do meu Departamento; que eu crei. Um primor!
- Por que?
- Por que o quê?
- Por que é um primor?
- Porque eu criei, ora! Levei dias compondo o texto, burilando o vernáculo, pesando a força das palavras.
- E precisa tudo isso aí pra fazer uma plaquinha?
- Claro, minha deusa. É necessário ser direto, objetivo, claro e incisivo; senão, babau : ninguém entende ou leva a sério; sabe como é esse Zé povinho...Só um chefe para fazer isso. Um chefe com características de líder. Eu, às suas ordens!
- Tudo isso? É preciso mesmo, Napoleão?
- É sim. Pode debochar, mas é que você não alcança a importância das ações públicas. Você fala em Napoleão como se eu fosse um maluco, mas, podes crer, a criação de uma placa deste teor é um paralelo ao Napoleão, sim, mas diante da travessia do Rubicão. Sacou?
- Rubicão? Onde é isso?
- Esquece, você só conhece é o Marquês de Rabicó.
- Conheço? Eu?
- Já esqueceu? Foi o único livro que você leu e já não lembra mais. Monteiro Lobato. Pedrinho, Narizinho, Emilia, Sítio do Pica-pau Amarelo.
- Ah, mas isso faz muito tempo. E o tal do Rubicão? Qual é a dele?
- É uma expressão, mulher! Significa estar diante de uma decisão ousada e sem volta. Irrevogável.
- E o tal do Napoleão, atravessou ou não?
- Não, porque não foi ele. Foi um outro general, não me lembro qual, mas das antigas. Das muito mais.
- E a tal plaquinha, qual é a dela nessa travessia?
- Já disse, esquece o Rubicão. A plaquinha impõe penalidades ao usuário do transporte público, defende o meio-ambiente e protege a coletividade. O texto é mais ou menos assim, resumindo, para você entender: “Fica expressamente proibido o uso de aparelhos sonoros no interior deste veículo. No caso de não obediência a esta postura municipal, o recalcitrante será retirado do veículo.”
- Não entendi nada.
- Como não? Está direta, objetiva, clara e incisiva. Quem ficar ouvindo radinho de pilha alto vai ter que descer do ônibus.
- Cê não tá no ônibus mas tá viajando! Primeiro, se ainda existe e está pregada, é muito pequena, eu não vi; segundo, isso de aparelho sonoro, radinho de pilha, hoje em dia, não existe mais, é do tempo da minha avó; se toca, cara, estamos na geração Ipod e,terceiro, ninguém sabe o que é recalci..., como é mesmo isso aí da sua genial criação?
- Recalcitrante; um indivíduo obstinado, teimoso, desobediente, que se insurge e resiste contra algo determinado.
- E por que não diz logo? Fica de frescura, deitando falação e aí ninguém entende mesmo. Depois vem dizer que o povo é ignorante! Não é não, cara, pode até chegar a Presidente da República e sem saber o que é recalcitrante. É só ser recalcitrante.
- Meu Deus! Tenho que apelar pra mim mesmo aqui nesta casa. Depois querem que o Serviço Público funcione a contento. Não há um fulcro comum entre autoridade e autorizados.
- Quer saber, Euzébio ? Esse papo de Rubicão, plaquinha recalcitrante e sei lá mais o que, já me encheu o saco! E olha que não o tenho! Gostou das concordâncias, sabichão? Vamos ver a das nove que é bem melhor. Relaxa.
- Tá bem, cê tem razão. As partes não reconhecem o valor dos servidores mesmo e, portanto, não os merecem. Pra mim, por hoje, chega.
- E pra mim, então?

E para o leitor, também. Afinal a das nove já vai começar. Tempo de prestar atenção ou desligar.


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